Dona Maria é uma senhora muito alegre e disposta. Quando chegamos a casa dela, ela nos recebeu com um sorriso contagiante. Não tem como não gostar de Dona Maria. Seu ânimo e amor pela vida são admiráveis. Ela participa de várias atividades durante a semana e está envolvida no grupo de hidroginástica aqui na JOCUM e em um grupo de idosos em outra organização. É moradora da comunidade do Cafezal há muitos anos e sua família foi uma das primeiras famílias a morar na parte alta da comunidade. Dona Maria tem 62 anos e já passou por muitas coisas. Altos e baixos que vieram lhe ensinar a dar valor à vida e tudo o que ela tem hoje.
Eu me senti honrada em conhecer um pouco da história da dona Maria e espero que vocês apreciem cada detalhe do que ela compartilhou conosco.
Kelly: Há quantos anos a senhora mora na comunidade do Cafezal?
Dona Maria: Há 36 anos. Quando eu cheguei aqui quase não tinha casa, não tinha eletricidade, água encanada, ônibus e rua, tinha apenas algumas trilhas para chegar aos lugares. Eu lembro que só tinha mato aqui e minha mãe chegou e demarcou o terreno e disse “É aqui que vou morar”. Naquela época você chegava e colocava a cerca aonde queria morar. Era assim que funcionava.
Kelly: O que te trouxe a comunidade do Cafezal?
Dona Maria: Minha irmã, minha mãe e toda a família já moravam aqui. Eu gostei muito do lugar, pois ficava perto do centro, do trabalho. Aqui conheci meu companheiro, construímos uma vida juntos e fomos à luta. Hoje me sinto vitoriosa, pois temos ônibus, posto de saúde, água, luz, ruas. Temos tudo o que queremos.
Kelly: Como é o seu dia a dia?
Dona Maria: Eu arrumo minhas coisas, limpo a minha casa, lavo roupa e durante a semana participo do grupo de idosos onde eu aprendo a pintar, bordar, fazer crochê. É uma sensação muito boa saber que você consegue fazer alguma coisa. Tem dias que eu vou à JOCUM para a aula de hidroginástica (dona Maria tem alguns problemas na perna e tem dificuldade para caminhar. As aulas de hidroginástica a ajudam a caminhar melhor). E no fim de semana eu descanso e vou à igreja.
Kelly: A senhora está feliz com sua vida?
Dona Maria: Eu estou muito feliz com a minha vida. Eu conheço novas pessoas, mantenho contato com elas e isso é muito bom.
Kelly: A senhora pode nos contar um pouco da sua história?
Dona Maria: Eu saí de casa aos 11 anos de idade. Eu tinha um amigo e meus pais acharam que eu estava fazendo algo errado com ele e me deram uma surra muito grande. Eu tive que ficar semanas na casa da minha tia tomando banho de sal para curar todas as feridas. Eu tive que ficar de cama muitos dias por causa da surra. Por causa disso decidi fugir de casa. Logo arrumei um trabalho de empregada doméstica e tentei começar a minha vida.
Quando eu tinha 12 anos fui estuprada e engravidei. Tudo aconteceu ao mesmo tempo, fiquei menstruada e logo fui estuprada e engravidei.
Kelly: O estuprador foi preso?
Dona Maria: Foi. Mas não sei quanto tempo ele ficou preso. Nunca mais tive notícias. Ele me deu 1 ano de assistência. Durante 1 ano todo eu fiquei trancada dentro de casa. Tinha muito medo de pessoas. Quando eu via pessoas estranhas começava a tremer e passar mal. Eu fiquei muito traumatizada.
Eu não fiz aborto por que sou muito contra. Sempre aconselho a não fazer. Mas quando meu bebê nasceu ele morreu. Depois disso eu fiz amizade com algumas meninas que me levaram para o Rio de Janeiro para aprender de novo como me relacionar com pessoas e perder o medo. Nessa época eu andava no meio dos artistas. Pessoas como Jerry Adriani, Roberto Carlos antes de ficarem super famosos. Também participei do concurso miss mulata Brasil. Andava maquiada, com roupas lindas, salto alto, jóias, viajava de avião e vinha visitar minha família de helicóptero. Mas algo aconteceu. Não sei como nem porque, mas fiquei louca. Andava na rua, falando sozinha, tendo delírios. Perdi tudo, dinheiro, jóias, amigos. Fiquei sozinha. Então me encontraram e me mandaram para um hospício em Belo Horizonte. Quando minha família me encontrou, me levou para um hospital melhor. Eles me perdoaram e me receberam de novo na casa deles. Cuidaram de mim e graças a Deus eu me recuperei. Comecei a trabalhar e nessa época engravidei do meu namorado, mas antes de eu contar que estava grávida ele me falou que era noivo de outra mulher e terminou comigo. Ele nunca soube do bebê. Hoje meu filho quer saber quem é o pai, mas eu nem sei como procurá-lo, pois nunca mais soube dele.
Alguns anos depois engravidei de novo e meu namorado queria que eu abortasse aí eu fugi e tive o bebê. Era uma menina, mas eu não podia criá-la. Então eu pedi para Deus colocar na minha vida pais para minha filha e Ele fez. Conheci um casal que era casado há 14 anos e não tinham filhos. Eles adotaram minha filha.
Kelly: Como foi para a senhora dar a sua filha para adoção?
Dona Maria: Foi muito difícil. Eu não tinha como criar minha filha. Depois que eu dei meu bebê para esse casal, decidi fugir mais uma vez, pois não agüentaria ver minha filha sendo criada por outras pessoas. Eu não queria que ela sofresse e não queria sofrer também.
Kelly: A senhora teve mais filhos?
Dona Maria: Tive. Mais tarde. Hoje eu tenho 5 filhos.
Kelly: A senhora reencontrou sua filha?
Dona Maria: Sim. Esse foi o dia mais lindo da minha vida! (Nesse momento seus olhos se enchem de lágrimas, mas ela tem no rosto um sorriso lindo, de felicidade)
Kelly: Como foi esse encontro?
Dona Maria: Eu fiquei muito doente, com meningite. Tive que ficar isolada e foi um tempo horrível. Eu tinha certeza que morreria dessa vez. Mas certo dia Deus falou comigo que não me levaria dessa vez, pois eu ainda tinha um encontro me esperando. Quando eu melhorei, comecei a procurar minha filha. Até que encontrei o endereço e fui atrás. Minha filha já estava com 30 anos. Foi lindo nosso reencontro. Ela já estava casada e tinha 2 filhos e já estava formada. Ela é enfermeira. Eu pedi perdão e ela me perdoou. Disse que me entendia e se sentia privilegiada, pois tinha duas mães. Ela não sabia da minha existência. Só descobriu que era adotada aos 20 anos quando precisava colocar seus documentos em ordem. Foi um choque para ela. Depois ela me pediu para conhecer o pai biológico. Procuramos por ele, descobrimos seu endereço, mas quando chegamos lá havia 3 semanas que ele tinha morrido.
Mas hoje eu sou muito feliz com minha filha. Ela sempre vem em visitar, liga para mim, conversamos muito. Tenho muito orgulho dela. (Dona Maria ostenta na sua parede uma foto da sua filha e diz que ela parece muito com dona Maria há anos atrás)
Kelly: E agora, quais são seus sonhos para o futuro?
Dona Maria: Ah, conhecer mais pessoas, conviver com elas. E meu grande sonho é ter meu lar arrumadinho, uma casa bonita. Mas estou orando e esperando em Deus.
Kelly: A senhora quer deixar uma última mensagem?
Dona Maria: Sim. Agradeço a Deus por estar viva e forte e vivendo a vida!
2 reações:
Muito, mas muito forte... fiquei profundamente emocionado. Que Deus vos abençoe sempre na missão de comunicar ao mundo a realidade destas comunidades que clamam pelo impacto da Igreja acuada em suas paredes.
Valeu Igor! Nosso desejo é que esse blog seja um canal de mudança de conceitos e voz para essa comunidade, assim trazendo justiça e glória ao nosso Deus!
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