Sabe quando as pessoas marginalizam as comunidades carentes, ou as ditas, favelas? "Ah, todo mundo é bandido", "Tá nessa vida por que quer", e por aí vai... Eu simplesmente AMO contradizer essas pessoas e jogar-lhes na cara exemplos de vida que deixam qualquer pessoa boquiaberta. Eu não nego a criminalidade em uma favela. Eu sei bem o que acontece dentro de uma comunidade carente, mas existem tantas pessoas com histórias de superação incríveis que dá orgulho de poder conhecer essas pessoas.
É o caso da dona Maria do Socorro, mais conhecida por mim como "vizinha". Todos os dias eu passo em frente à casa dela e a vejo trabalhando arduamente nos seus recicláveis. Do outro lado da rua eu grito: "Oi vizinha!" ela me responde: "Oi vizinha! Tudo bem?" com um baita sorriso no rosto. Sempre!
Algus dias atrás, sentei com ela em frente a sua casa, no meio de sacos gigantescos de recicláveis e ouvi um pouco da sua história. É incrível as lições que você aprende com essas pessoas. "Heróis anônimos", como eu gosto de chamar.
Com vocês, dona Maria do Socorro - a vizinha.
Kelly: Vizinha, conta um pouco da sua história.
D. Socorro: Eu sou de Ataléia, BA. Quando tinha três anos de idade, minha mãe pegou meus três irmãos e foi embora, me deixando com o meu tio que me pôs para trabalhar cuidando dos filhos dele.
Kelly: Mas você só tinha três anos? Como é possível?
D. Socorro: Sim, tinha três anos e já trabalhava cuidando dos filhos do meu tio.
Kelly: Você sabe para onde sua mãe foi? Teve algum contato com ela depois disso?
D. Socorro: Não. Nunca mais a vi. Eu lembro que uns três dias antes eu vi meu pai indo embora. Ele botou a enxada nas costas e pegou meio pacotinho de sal e foi embora. Depois a minha mãe pegou meus irmãos e foi para Brasília, eu acho. Eu nunca quis saber deles, pois a minha mãe me deixou. Como que pode ela levar meus irmãos e me deixar? Eu tenho 53 anos hoje e nunca mais ouvi falar de ninguém da minha família. ( É possível ver a dor nos seus olhos marejados de lágrimas. 53 anos e ainda tanta dor pelo abandono...)
Kelly: Você passou muito tempo com o seu tio?
D. Socorro: Não. Eu apanhava muito dele. Quando eu fiquei um pouco maior, fui trabalhar em casa de família. (o "um pouquinho maior" a que ela se refere é por volta dos 5 ou 6 anos de idade).
Kelly: E como foi trabalhar para os outros?
D. Socorro: Ah, foi muito difícil. Eu trabalhava demais. Eu ainda não sabia cozinhar direito e teve um dia que meu arroz ou feijão, não lembro, ficou muito salgado e meu patrão jogou um prato de louça na minha cara. Cortou bem feio e ficou muito inchado. Eu nem fui no médico. Fiquei vários dias com meu rosto muito inchado (até hoje dá para ver uma grande cicatriz próxima ao olho). Também eu apanhava demais. Eu ainda era uma criança e não sabia fazer as coisas direito, aí eles me batiam.
Kelly: Você ficou por muito tempo nessa casa?
D. Socorro: Não. Quando eu tinha 10 para 11 anos vim para Belo Horizonte com meu irmão de criação. Quando chegamos aqui, nos separamos e eu não soube mais dele. Fiquei trabalhando em casa de família por um tempo e guardando dinheiro. Quando eu tinha onze anos consegui comprar meu primeiro barraco e fui morar sozinha. Durante a semana ficava com a família para a qual eu trabalhava e nos finais de semana ficava no meu barraco.
Kelly: Você tem uma família hoje, né?
D. Socorro: Sim. Tive 8 filhos, mas um deles morreu. Eu nunca maltratei meus filhos, pois o que eu passei na vida não desejo para ninguém.
Kelly: O que aconteceu com o seu filho?
D. Socorro: Ele vendeu um celular para uma pessoa e foi cobrar essa pessoa e acabou levando 3 tiros no peito. Ele tinha 21 anos. Dói muito você ver seu filho morto (apenas duas vezes a expressão da D. Socorro muda extremamente e seus olhos enchem de lágrimas: quando fala do abandono da sua mãe e a morte do seu filho).
Kelly: Você foi casada?
D. Socorro: Nunca casei. Nunca nem quis saber de casamento. Quando meus namorados falavam de casamento eu botava eles para fora.
Kelly: Por quê?
D. Socorro: Ah, cansei de ver homem batendo em mulher, furando elas de faca. E eram mulheres que tinham família! Imagina eu, uma mulher sem família, sem ninguém? Poderiam me matar que ninguém iria perceber. Iria apodrecer sozinha lá no meu barraco. Não quero nem saber de casamento.
Kelly: Quando você começou a trabalhar com reciclagem?
D. Socorro: Ah, desde os 15 anos. Aonde eu estava eu sempre juntava as minhas coisas. Sempre amei trabalhar com recicláveis.
Kelly: Como é o seu trabalho hoje?
D. Socorro: Eu não tenho hora para terminar de trabalhar. Eu gosto muito do que faço. Gosto da correria, de carregar peso, de fazer amigos. Aonde eu vou estou trabalhando. Quando tem festa na comunidade as pessoas vêm aqui em casa me chamar para eu ir recolher meus recicláveis. Todo mundo aqui na comuidade me conhece e me ajuda a juntar as minhas coisas.
Tem os dias que eu saio para juntar meus recicláveis e tem os dias que eu fico em casa para separar as coisas.
Kelly: E como você faz para trazer os sacos lá de baixo?
(Como moramos em um morro, ela vai na avenida que fica "no pé do morro" para recolher as embalagens recicláveis. Juntar não é o problema, o que eu imaginava que seria uma dificuldade é subir o morro carregando os sacos gigantes de recicláveis!)
D. Socorro: Eu junto tudo o que eu posso e marco um horário com o meu vizinho para ir buscar. Eu não trabalho com o carrinho por que não tem como subir o morro carregando tanto peso. Aí o Anísio (o vizinho) vai lá e pega para mim e eu pago o combustível. Um ajuda o outro. O Anísio também trabalha com reciclagem. Tem recicláveis que eu não trabalho, aí eu dou para ele e assim a gente vai se ajudando. Nós entregamos os produtos para empresas diferentes.
Kelly: Como funciona a entrega dos seus recicláveis?
D. Socorro: Vem um caminhão a cada duas semanas para buscar tudo o que eu juntei e leva para uma empresa no Barro Preto (um bairro daqui de BH).
Kelly: Quando você descansa?
D. Socorro: No sábado eu não faço nada! É meu dia de descanso. E no domingo a noite eu vou à igreja. Eu vou à igreja três vezes por semana.
Kelly: Você gosta do seu trabalho?
D. Socorro: Eu adoro o que faço! Meu trabalho é muito precioso para mim. Peço a Deus força, coragem e disposição todos os dias, por que eu preciso de muita disposição para fazer o meu trabalho.
(Em outra ocasião em que eu conversei com ela, lembro que D. Socorro disse sobre o seu trabalho o seguinte: "Eu acho que meu trabalho é um trabalho muito digno. Reciclar lixo é como salvar uma vida. Cada vez que tiro uma garrafa de plástico da rua sei que estou salvando uma vida".)
Kelly: Qual é o seu sonho?
D. Socorro: Meu sonho é cuidar dos meus filhos, continuar trabalhando e arrumar a minha casa. Quero bater uma laje e morar em cima e deixar a parte de baixo para guardar meus recicláveis que agora ficam na rua. E quem sabe um dia ter uma lanchonete para vender salgados.
Eu encerrei a conversa com uma "Mini sessão de fotos". D. Socorro estava muito empolgada e se arrumou para fazer as fotos. Arrumou o cabelo e passou baton. Ela que decidia como queria tirar as fotos.
Foi uma conversa de cerca de 1 hora, mas que me fez admirar ainda mais essa mulher que tinha tudo para dar errado na vida, mas escolheu trabalhar e vencer na vida com o suor do seu trabalho honesto. Tenho muito orgulho dela. Para mim ela é uma vencedora!
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